Lembro-me de como olhavas para mim como se eu fosse a única pessoa no mundo. Lembro-me de como os teus dedos traçavam o meu corpo e como as tuas palavras elogiavam cada centímetro de mim. Lembro-me de como me levavas ao mar porque sabias o quanto eu gostava dele e como te sentavas comigo rodeado de amor.
Lembro-me de acampar sob as estrelas, partilhando todas as nossas histórias do passado e todos os nossos sonhos para o futuro. Lembro-me de conduzir pelas montanhas com o tejadilho abaixado no teu carro desportivo e a tua mão a segurar a minha.
Lembro-me de acordar todas as manhãs com mensagens que enviaste durante a noite, quando acordaste e pensaste em mim. Lembro-me de como conduzias quarenta minutos da tua casa até à minha se houvesse a possibilidade de me veres por dois minutos.
Lembro-me de como preparavas as minhas refeições e passavas cuidadosamente a minha roupa a ferro. Lembro-me de aconchegar a minha cabeça no teu peito e adormecer com o teu cheiro e toda a segurança que os teus braços proporcionavam. Lembro-me de ti como a minha alma gémea em todos estes momentos.
Mas também me lembro de ter dito que o meu telefone era monitorizado para saberem com quem eu falava, que o meu carro era monitorizado para saberem onde eu estava.
Lembro-me de quando disse que tinha sido treinado para matar e de como era fácil fazer-me desaparecer com um simples telefonema. Lembro-me de como disse que pagaria a pessoas para me vigiarem e seguirem.
Lembro-me de cada grama de medo que provocaste em mim. Lembro-me de como disseste que tinhas um tumor cerebral incurável para ganhar a minha simpatia e de como disseste que toda a tua família tinha morrido de forma tão trágica para que eu me sentisse demasiado culpada para te deixar também.
Lembro-me de cada cêntimo que me roubaste até não ter mais dinheiro e depois só precisei mais de ti. Lembro-me de como o tratamento silencioso passou de horas a dias e lembro-me de esperar junto ao telefone por notícias suas, cada vez mais longas.
Lembro-me de ter perdido amigos por tua causa e da raiva que tinhas quando eu tentava fazer planos com os poucos amigos que ainda restavam.
Lembro-me de como drogavas as minhas bebidas quando saíamos e depois ficavas em cima de mim com uma frieza aterradora enquanto eu entrava e saía da consciência. Lembro-me de todos os ultimatos e de como me esforçava constantemente por ser melhor e de como falhava constantemente.
Lembro-me de ver as fotografias suas com ela quando disse que estava numa viagem de golfe e de como me convenceu de que eu estava a ver coisas e a perder a cabeça quando o confrontei.
Lembro-me de pedir desculpa por ser demasiado louco e lembro-me de acreditar que talvez fosse.
Lembro-me de esperar ao telefone que me quisesses e de conduzir quarenta minutos a meio da noite para te ver quando me telefonavas.
Lembro-me tão bem dessas viagens e da sensação que tinha dentro de mim quando tudo me gritava para dar meia volta, desistir de ti e ir para casa. Lembro-me de ignorar essa intuição.
Mas também me lembro de todas as vezes que ganhei coragem para me ir embora e de como tu ameaçavas matar-te se eu o fizesse. Lembro-me de como passava a noite acordada a pedir desculpa e a implorar que não o fizesse.
Lembro-me de sentir que me estava a afogar e, de repente, o oceano já não me parecia tão belo.
É desse dia que mais me lembro. Quando esperaste que eu fosse de férias com a minha família, quando esperaste pelo momento perfeito para fazer aquele telefonema.
Lembro-me de estar a jantar com a minha família e de ouvir a tua voz fria quando me disseste que ela estava grávida e que te ias embora. Lembro-me de sair a correr do restaurante aos gritos, como se quisesse escapar ao mundo que se estava a desmoronar à minha volta.
E lembro-me do teu presente de despedida, de como ameaçaste matar-me. Lembro-me de sentir como se já o tivesses feito.
Lembro-me dos meses que se seguiram a esse dia. Como os ataques de pânico me impediram de sair de casa, como a hipervigilância me impediu de dormir, como a dor me impediu de comer.
Lembro-me de gritar entre lágrimas: "Como é que vou conseguir recuperar disto?" Lembro-me de ver a minha cara ao espelho e de sentir pena da mulher destroçada que se via reflectida.
Lembro-me de olhar para fotografias antigas e reconhecer a minha cara, mas não me reconhecer a mim próprio. Lembro-me de fazer amizade com o nevoeiro pesado que pairava sobre mim e de como me agarrava à dor porque era o único pedaço de ti que me restava.
Lembro-me de dormir com o teu cheiro até que ele me deixou também e de como cada palavra de cada canção me fazia lembrar de ti.
Lembro-me de me deparar com a palavra "narcisista" e como, de repente, todas as peças do puzzle se encaixaram.
Lembro-me de como a dor se intensificou à medida que todos aqueles momentos felizes e amorosos passaram de memórias a miragens - como o amor não era mais do que um produto da minha imaginação que eu tanto
que procurei desesperadamente quando precisei.
Lembro-me das noites passadas a pesquisar na Internet para descobrir a verdade por detrás de cada mentira que me tinha contado. Lembro-me de ler todos os livros que pude sobre narcisismo, sobre empáticos, sobre abuso.
Lembro-me de me aperceber que não era louca, mas sim uma vítima do mal que vive dentro de nós e que projectamos nos outros.
Lembro-me de procurar o teu nome todos os dias, de procurar o nome dela todos os dias. Esperando pacientemente para ver como o karma seria entregue, para ver como a vingança ou a justiça tomaria forma. Lembro-me de como queria contar ao mundo a minha história, como queria escrever um livro e falar publicamente sobre ela.
Lembro-me de como queria salvar os outros do inferno que estava a suportar. Lembro-me do consolo, da validação e da segurança que encontrei nas comunidades de recuperação.
Acima de tudo, lembro-me dos dias em que o nevoeiro começou a levantar, em que pude ver novamente a beleza do oceano.
Quando deixei de te procurar, quando deixei de me preocupar com o teu paradeiro ou com o que estavas a fazer. Lembro-me de ter deixado de lado a ideia de vingança, de justiça, de medo, de ódio, de vitimização.
Lembro-me deixar ir de ti. E lembro-me dessa noite, de sair para olhar para as estrelas pela última vez, para pensar em ti pela última vez. E lembro-me dessa noite, como as estrelas se esconderam atrás das nuvens, tal como tu te tinhas escondido atrás de uma máscara.
Lembro-me de como era bonito ver as estrelas e não ter de pensar em ti uma última vez, como se as estrelas soubessem que era altura de partir.
Lembro-me de encontrar o amor depois de ti, de encontrar a felicidade e a luz que nunca pensei voltar a ver. Lembro-me de me sentir novamente segura. Acima de tudo, lembro-me da primeira vez que olhei para uma fotografia minha e me senti novamente eu.
Lembro-me de me olhar ao espelho e já não sentir pena, mas ver força e sentir orgulho. Lembro-me de me sentir ainda mais eu do que alguma vez me senti. Lembro-me de, de repente, só sentir compaixão por mim, por ti, por ela.
Mas agora, o que mais gosto de recordar é como me esqueço de me lembrar de ti.
por Seanna Kelly